24 de jan. de 2016

MOOCA ; O mais bairrista dos bairros de São Paulo



Estereótipo da "grande família" à paulistana, a Mooca lidera ranking dos melhores lugares para viver em SP, revela Datafolha

por ROBERTO DE OLIVEIRA
fotos CAMILA FALCÃO


Camila Falcão
Fachada de casa típica da rua Hipia
Fachada de casa típica da rua Hipia
Qual é o bairro dos seus sonhos? O lugar ideal é cheio de ruas arborizadas, tem trânsito civilizado, belas paisagens e uma tranqüilidade que permite desfrutar a vizinhança com toda segurança?

Bem, o bairro eleito pelos paulistanos não se encaixa exatamente no perfil descrito acima (se é que algum se encaixa) e errou feio quem apostou em Jardins, Higienópolis e outros campeões de preços e badalação.

O melhor lugar para morar em São Paulo, segundo pesquisa Datafolha, é a Mooca, um encrave localizado nos arredores de um pólo industrial desativado, entre a conglomerada região central e a populosa zona leste. Embolados logo a seguir, figuram Vila Mariana, Tatuapé, Ipiranga e Santana (veja quadro na pág. 24). Com exceção deste último, todos ficam no centro expandido da cidade.


Uma peculiaridade talvez possa explicar por que, apesar de o percentual de citações estar na margem de erro, a Mooca aparece sozinha no topo da pesquisa: o bairrismo. Seus moradores acreditam piamente que, entre todos os bairros paulistanos, a Mooca é única, singular e não pode ser trocada por nenhum outro.

"Quem nasce ou vive aqui só se sente bem aqui", acha Carlos Branchi, 65, assistente comercial. "O mooquense quando muda, no máximo, troca de quarteirão", diz ele, enquanto acena para um, cumprimenta outro, dá tchau para a vizinha que acompanha a conversa, atenta, da janela.


Camila Falcão
Casas Floridas
Casas floridas
Porque também tem essa, a Mooca adota o gentílico: seus moradores são mooquenses, antes de serem paulistanos, e os laços comunitários passam longe do anonimato característico dos grandes centros urbanos. Quem nunca pisou por lá pode até se questionar: Afinal, o que a Mooca tem que os outros bairros paulistanos não têm?

Cheiro característico, para começar. Nas ruas principais, bate um odor de alho frito no azeite ou de molho de tomate se misturando ao de café.


Camila Falcão
Fachada histórica
Fachada histórica
Senso de comunidade, para continuar. É quase impossível entrar em qualquer lugar, um botecão, um bar com gaiolas de passarinhos na porta ou um restaurante, e não cruzar com rodinhas de amigos papeando _ ou trovejando, dado o volume de decibéis praticado. Na Mooca, belo, falar alto faz parte do DNA, e as pessoas se cumprimentam na rua. Pelo nome.

"Somos bairristas, sim. E com muito orgulho. Conservadores? Também. Acima de tudo, a Mooca é um bairro onde todos se conhecem, como uma irmandade", gaba-se o comerciante Gilberto Luizetto, 57, o dono do Giba's Bar, tradicional templo de comida caseira do bairro.


Camila Falcão
Igreja São Rafael, uma das mais tradicionais da Mooca
Igreja São Rafael, uma das mais tradicionais da Mooca
Filho de pai italiano e mãe espanhola _ mistura de imigrantes faz parte da identidade do bairro _ , Giba nasceu, cresceu, se casou e ali criou três filhos. "Não conseguiria morar em outro lugar de São Paulo. Minha origem, história e todas as referências estão espalhadas e perpetuadas nessa terra", define.

Sua mulher, Rosana, 51, reclama do machismo, do pão-durismo e de uma certa falta de privacidade _"Qualquer coisinha que acontece, todo mundo fica sabendo"_ , mas diz que não existe lugar melhor para "constituir uma família".

"É a região mais acolhedora do Brasil", exagera sua vizinha Roseli di Sessa Barbudo, 53, naquele sotaque italianado que lembra o da personagem Tancinha (vivida por Cláudia Raia), na novela "Sassaricando" (1987), da Rede Globo, outra particularidade mooquense.


Camila Falcão
Chaminé da antiga fábrica da Antárctica
Chaminé da antiga fábrica da Antárctica
"Nos outros bairros, as pessoas pegam o mesmo elevador que você e nem olham na sua cara", acredita Rosana, que nasceu e viveu a primeira década de vida no Brás. "Mas sou da Mooca", faz questão de frisar.

O casal é unânime ao apontar a segurança como outro ponto favorável da região. "Não se vê tanto policiamento pelas ruas, mas é um lugar seguro", diz Giba, que se orgulha de nunca ter sofrido um assalto. "Quem vem de fora chama a atenção dos locais. Aqui, todo mundo conhece todo mundo", conta o comerciante.


Camila Falcão
O comerciante Gilberto Luizetto, do Giba's Bar
O comerciante Gilberto Luizetto, do Giba's Bar
Realmente, a Mooca é um dos bairros mais tranqüilos da cidade. Levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Estado mostra que, durante todo o ano passado, não foi registrado ali nenhum latrocínio (roubo seguido de morte) nem homicídio doloso (com intenção de matar). Para efeito de comparação, no vizinho Tatuapé, foram notificados quatro assassinatos.

O quesito "segurança" figura entre os fatores mais lembrados pelos entrevistados do Datafolha na hora de escolher o bairro, seguido por sossego, acesso fácil e ofertas de serviços (veja quadro na pág.26).


Camila Falcão
Entrada do Teatro Artur Azevedo
Entrada do Teatro Artur Azevedo
O "centrinho" da Mooca fica a cerca de 3 km da catedral da Sé, o coração paulistano. O acesso mais utilizado é, conforme o horário, a congestionada Radial Leste, seguida pela avenida do Estado e pelo parque Dom Pedro, dependendo de onde se quer chegar.

O perfil industrial da região foi substituído pelo de prestador de serviços, principalmente a partir do início dos anos 1980, segundo o economista mooquense Pedro Felice Perduca, 57. Há desde oficinas de consertar sapatos, daquelas antigas, até lojas de aluguel de carro.


Na movimentada Paes de Barros, sobressai a primeira construção moderna do bairro, o teatro Artur Azevedo, de 1952, outro xodó da Mooca. "Se estiver uma lâmpada acesa ou alguém trabalhando na fachada, os moradores ligam para saber o que está acontecendo", conta Antonio Santoro Júnior, 67, coordenador de arte.

De programação eclética, o Artur Azevedo chama mais a atenção dos locais quando privilegia a comédia. "O povo da Mooca é festivo, gosta de dar risada", explica Antonio.

Perto do teatro, relíquias resistem ao tempo e poderiam figurar na categoria "sobreviventes" numa megalópole voraz como São Paulo. Na rua Catarina Braida, bem atrás de três torres altíssimas, construídas a pleno vapor, uma casa simples, com a parede repleta de desenhos de pássaros, lembra aqueles típicos armazéns rurais quase extintos até no interior.


Camila Falcão
Antonio Santoro Junior, coordenador de arte do Artur Azevedo
Antonio Santoro Junior, coordenador de arte do Artur Azevedo
Lá funciona a Serca (Sociedade Esportiva Recreativa dos Criadores de Avinhados), criada em 1970. A entidade possui cerca de mil associados, dos 18 aos 70 anos, que se reúnem nos finais de semana para um bate-papo, uma cervejinha, jogar sinuca e, sobretudo, ouvir o canto de curiós, canários-da-terra, coleirinhas, trincas-ferros e bicudos. Duas vezes por mês, organizam um campeonato de canto no Parque da Mooca. Com platéia.

Na Marquês de Valença, uma placa avisa: "ambiente familiar". O Balneário Jóia é um tradicional ponto de encontro masculino da Mooca. Aos sábados, a sauna chega a atrair 150 senhores, boa parte deles acompanhada de filhos, netos e bisnetos.


Camila Falcão
Marquise do teatro
Marquise do teatro
Outro fenômeno digno de registro ocorre na rua Javari. Que time é capaz de agregar os arqui-rivais torcedores do Palmeiras e do Corinthians a favor de um time alheio? Só mesmo o Juventus, o segundo time de boa parcela dos paulistanos.

Nascida há cerca de 451 anos, às margens do rio Tamanduateí, a Mooca começou a ganhar feições de bairro entre os anos de 1870 e 1890 com a chegada dos imigrantes _italianos à frente, seguidos por espanhóis, portugueses e tantos outros.


Camila Falcão
Um dos primeiros depósitos da Mooca
Um dos primeiros depósitos da Mooca
A reboque vieram os trilhos da Estrada de Ferro Inglesa e, no início do século seguinte, as indústrias, principais responsáveis pelo povoamento da região.

O vínculo familiar entre habitantes do bairro surge a partir daí. Longe de seus parentes europeus, os moradores se "familiarizavam" por afinidades com os vizinhos, apesar dos percalços provocados pelo idioma.


Camila Falcão
Morador apara planta em uma tranquila rua do bairro
Morador apara planta em uma tranquila rua do bairro
A filha de um italiano da esquina se casava com o filho de um espanhol da casa da frente, por exemplo, ampliando o status da "grande família" que foi se firmando.

Outro ponto que ajudou a consolidar essa característica tão peculiar foi a forte consciência social, impulsionada pelos movimentos operários, que ali existiam até a década de 1950.

"A Mooca tem um histórico de luta social dentro de São Paulo. Por isso, seus moradores são tão orgulhosos de viver numa espécie de mundo à parte, com identidade e códigos próprios", acredita o professor de geografia da USP André Roberto Martin, 53, especialista no bairro.


Camila Falcão
Entrada da Villa da Mooca
Entrada da Villa da Mooca
"Há um sarcasmo, uma ironia no trato muito parecida com a que ocorre no bairro portenho da La Boca, em Buenos Aires", compara.

Esses atributos históricos e sociais também existiram em outras regiões paulistanas, como no Brás, mas só sobrevivem na Mooca, diz o professor. Uma das justificativas para a resistência é o fato de que parte significativa do bairro estar relativamente protegida do crescimento do centro.


Camila Falcão
Moinho Santo Antônio
Moinho Santo Antônio
Do ponto de vista urbano, muitos moradores eram colegas de trabalho em indústrias como Antarctica, São Paulo Alpargatas e Crespi. E também vizinhos de rua. "Essa relação social resistiu à diluição e ao individualismo tão marcantes no mundo vertical que se transformou São Paulo."

Até quando, ninguém sabe ao certo responder. Elizabeth Florido, 43, diretora da AmoaMooca (Associação dos Moradores e Amigos da Mooca), elenca uma série de problemas que o bairro enfrenta nos dias de hoje.

Áreas degradadas e invadidas, principalmente nas regiões das antigas fábricas e casarões abandonados, ausência de área verde (a região é um dos microclimas mais quentes de SP), carência de transporte coletivo e trânsito caótico nos horários de pico -devido à proximidade central, o bairro é rota de passagem.

O sistema de capacitação fluvial é antigo, do início do século 20, e as enchentes ocorrem em partes do bairro.


A explosão imobiliária é outro sinal crítico. Levantamento da associação indica que a Mooca deve receber até o ano que vem 15 mil novos habitantes. Todos eles devem morar em prédios. Ou seja, mais trânsito, maior consumo de água etc.

Basta um giro de 180 graus, na rua dos Trilhos, rumo à avenida Paes de Barros, por exemplo, para perceber que, de fato, os edifícios estão alterando a paisagem do bairro e justificando o nome "mooca" -que em tupi-guarani significa "faz casa".

A julgar pelo número de novos prédios em construção, a região atravessa um intenso processo de transformação pautado pela verticalização, avalia o professor de história da arquitetura José Eduardo de Assis Lefèvre, da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo.

Nos terrenos que antes abrigavam as fábricas estão sendo erguidos condomínios fechados, conjuntos de prédios rodeados por muros altos, espécie de "ilhas de tranqüilidade", na expressão do professor da USP.

Essa propensão tende a alterar totalmente o ambiente, o espaço público e até a composição social do bairro. "Do ponto de vista urbano é ruim, porque torna a rua um espaço neutro, só de circulação de carros, o que ameaça a socialização, a relação entre as pessoas, uma característica tão marcante em toda a história da Mooca", diz.

O que os moradores mais temem é que deixem de ser mooquenses e passem a ser identificados, simplesmente, como paulistanos.