13 de fev. de 2010

LOCAL PERFEITO PARA A FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO

Local em forma de triângulo
ESCOLHA DO LOCAL
O lugar eleito por Nóbrega para reunir as “três aldeias em uma” era extremamente estratégico. Mais que isso: era virtualmente perfeito. Localizado no topo de uma colina acastelada entre os vales de dois rios – o lento e sinuoso Tamanduateí (“rio do Tamanduá”) e o encachoeirado Anhangabaú (“rio do Anhangá”, ou “do demônio”) – o sítio, em forma de triângulo, com cerca de 2,5 hectares de área (o equivalente a três campos de futebol), era facilmente defensável e oferecia uma ampla vista para o campo, as várzeas e as planíces.
ENCOSTA ESTRATÉGICA
Os jesuítas estabeleceram sua casa, sua capela e seu colégio numa porção do terreno próxima a uma encosta abrupta, formada por uma das “sete voltas” que os meandros do Tamanduateí tinham escavado na rocha bruta, justamente no ângulo mais agudo da curva de maior reentrância. Havia um desnível de cerca de 35 metros entre o topo da colina e a várzea adjacente.
Do alto do morrete, com 745 metros de altitude, dominava-se todo o panorama: a leste se espraiavam os brejais que constituíam a planíce alagadiça pela qual o Tamaduateí deslizava lentamente em sinuosos volteios. A oeste, para além do vale sombrio do Anhangabaú, pequenos “mares de morros” ondulavam até atingirem sua altura máxima numa cordilheira de granito, então chamada Caaguaçu (ou “mato grosso”) e depois denominada pelos geólogos de “Espigão Central”, pelo topo da qual hoje corre a avenida Paulista.
Ao norte do colégio havia uma outra planíce alagadiça, essa formada pelas várzeas do Tietê (“rio verdadeiro” ou “principal”, em tupi), então chamado Anhembi (“rio das nhambis”, pequena erva de flores amarelas). Ao sul ficavam as colinas e mesetas por entre as quais serpentava o caminho que levava à aldeia de Jeribatuba, às margens do rio de mesmo nome (hoje Pinheiros) e, depois, até a boca da serra de Paranapiacaba, pela qual era possível descer até a ilha de São Vicente.
INÍCIO DOS CAMINHOS
O coração da colina era o ponto de onde partiam (na verdade, para o qual convergiam) vários caminhos e trilhas indigenas rumo aos quatro pontos cardeais. Do Pátio do Colégio rumo ao sul, pela antiga rua do Carmo (hoje Roberto Simonsen), primeiro costeando a várzea do Tamanduateí e depois descendo até ela, seguia a vereda que levava a Santo André e São Vicente, pela Trilha dos Tupiniquins, depois rebatizada de “Caminho Velho do Mar”. Brás Cubas, o capitão-mor de São Vicente, possuía terras ali. Mais tarde, cedeu-as à ordem do Carmo, que lá fundou um convento.
DIREÇÃO NORTE
Para o norte, pelas atuais ruas São Bento e 15 de Novembro, “no beiço da escarpa que dava para o Anhangabaú”, partia o caminho que levava primeiro para a aldeia de Inhapambuçu, localizada no vértice do triângulo e onde vivia o grande líder tupiniquim Tibiriçá (“vigilante da terra”), o principal aliado dos portugueses. O mesmo caminho, em sua continuação, conduzia para as várzeas do Tietê, para Mogi das Cruzes e para o vale do Paraíba (“rio ruim”), ainda selvagem e ocupado por tribos inimigas dos portugueses.
DIREÇÃO OESTE
Para oeste, pelas atuais ruas Direita e do Ouvidor, descendo a abrupta encosta da montanha rumo ao vale do Anhangabaú, nos arredores da atual praça da Bandeira, começava o Caminho do Sertão. Ele passava por campos povoados por bandos de perdizes (hoje, bairro de Perdizes), seguia por planuras recobertas e, subindo pela atual rua da Consolação, chegava ao topo do Caaguaçu, para então mergulhar nas lonjuras do sertão, passando antes por uma densa floresta de pinheiros (hoje bairro de Pinheiros) rumo à zona de campos hoje pertencente aos estados do Paraná e de Santa Catarina – o território dos carijós e dos guaranis, cuja conversão ao cristianismo era o principal objetivo do padre Nóbrega.
DIREÇÃO SUDESTE
Para sudoeste, seguia ainda o futuro caminho de Santo Amaro, que se arrastava ao longo da planíce do rio Pinheiros e também levava para a Baixada Santista.
VALE E RIO ANHANGABAÚ
Um dos acidentes geográficos mais importantes da região era o vale do Anhangabaú, abrigando a área mais densamente florestada da região e delimitando o lado oeste da colina. Tão sombria e misteriosa era a mata recobrindo suas margens que o córrego tornou-se tabu: apenas o pajé podia descer até as águas límpidas e murmurantes.
Embora os jesuítas tenham traduzido o nome tupi Anhangabaú por “Rio do Diabo” (ou “Água do Demônio”), Anhangá não era o “demônio” propriamente dito. Tratava-se, na verdade, de um dos tantos elementais – uma espécie de duende – com os quais os indígenas povoavam suas matas. O Anhangá, protetor da caça, aparecia sob a forma de um veado branco (ou vermelho) com olhos de fogo. Os desafortunados o bastante para vê-lo – em geral porque haviam abatido fêmeas prenhas de veados ou de inhaúmas – eram acometidos por forte febre que levava à loucura.
Com cerca de apenas 4,5 quilômetros de extensão, o Anhangabaú nascia (na verdade, continua nascendo, embora tanto a vertente quanto o próprio curso estejam hoje canalizados) no bairro Paraíso, entre as ruas Vergueiro e Padre Cardim, a uma altitude de 780 metros. O córrego percorria o leito da atual avenida 23 de maio, recebia dois outros afluentes, margeava a colina e, nas proximidades da atual rua 25 de Março, engrossava o Tamaduateí já a 740 metros. Os 40 metros de desnível entre a nascente e a foz tornavam o Anhangabaú um dos únicos rios encachoeirados numa zona onde os demais cursos d’água fluem preguiçosos e repletos de meandros entre planíces alagadiças.
As evidências da importância mística de Piratininga para os indígenas não se restringiam às cerimônias xamânicas realizadas no Anhangabaú: eram muitas e óbvias. Além de encruzilhada dos caminhos que rasgavam o planalto e tradicional “ponto de escala de muitas tribos”, como escreveu Nóbrega, a colina onde os jesuítas ergueram seu colégio abrigava pelo menos três cemitérios ancestrais, “campos santos” dos nativos.
Além de ser banhada pelo rio do Anhangá e de sediar cemitérios, uma parte da colina de Piratininga era chamada de Itacorá, ou “pedra rachada por raio”, remetendo a outro aspecto importante da mitologia indígena: as rochas atingidas por raios celestes, que abundam em várias outras regiões do Brasil e que, em geral, tornavam-se pontos de peregrinação.
Assim, mais do que meramente um ponto nevrálgico, Piratininga era também, e principalmente, um “lugar de poder”. Se hoje tudo isso está esquecido, e provavelmente não será lembrado ao longo da celebração dos 456 anos de fundação do Colégio de São Paulo dos Campos de Piratininga, é porque, pura e simplesmente, continuamos sendo “uns desterrados em nossa terra”, como o já citado Sérgio Buarque de Holanda vaticinou na abertura de seu Raízes do Brasil.

Fonte: Artur Lopes
Formatação:HRubiales
Biografia:
São Paulo no Século XVI, Afonso Taunay, Tours Arraul&Cie, 1921
A Cidade de São Paulo – Geografia e História, Caio Prado Jr., Brasiliense, 1983
Aldeamentos Paulistas, Pasquale Petrone, Edusp, 1995
A Coroa, a Cruz e a Espada, Eduardo Bueno, Objetiva (ainda inédito)
São Paulo Seiscentista, Teodoro Sampaio, MEC, 1975