A mobilidade era a marca primordial dos aldeamentos indígenas que lhe deram origem. E tão intensa é a ligação entre a São Paulo dos portugueses e a Piratininga dos tupiniquins que se pode falar numa outra fundação da cidade cujos 456 anos se comemoram oficialmente em 25 de janeiro : nesse caso, uma pré-fundação, já que está ligada ao surgimento das aldeias esparramadas pelo topo do planalto paulista antes de 1500.
De fato, na zona hoje inteiramente ocupada e descaracterizada pela vasta malha urbana de São Paulo, existiam, antes (e até seis décadas depois) da chegada dos europeus, várias aldeias tupiniquins. Em livro clássico, o sociólogo Florestan Fernandes afirmou que eram 12, mas o historiador John Manuel Monteiro julga que Fernandes interpretou equivocadamente trecho de uma carta do padre José de Anchieta e, embora não duvide que o número fosse maior, ressalta que apenas quatro tabas podem ser identificadas, são elas:
1.Inhapambuçu (“morro do alto do qual tudo se vê”, em tupi), possivelmente localizada no lugar onde hoje se ergue o mosteiro de São Bento (não no Pátio do Colégio) e cujo líder, ou “principal”, era o legendário Tibiriçá;
2.Jeribatuba (“lugar de muitos jerivás”), chefiada por Caiubi, supostamente irmão de Tibiriçá, e que ficava na margem direita do rio Pinheiros, no atual bairro de Santo Amaro;
3.Ururaí (“rio dos jacarés”), aldeia de Piquerobi (outro “irmão” de Tibiriçá), onde hoje fica São Miguel Paulista;
4.Ibirapuera (“lugar que antes era mato”), também erguida às margens do rio Pinheiros.
Essas e as demais aldeias tupiniquins do planalto – como Guarapiranga, Itaquaquecetuba e Maniçoba – eram agrupamentos sazonais, meramente provisórios. De tempos em tempos (entre cinco e dez anos) e por vários motivos (desgaste do solo, escassez da caça) eram transferidas para outros lugares. “Esses índios não têm endereço certo”, lastimou-se Anchieta, em carta escrita em 1556. Consideravelmente menores que as aldeias tupinambás, os aldeamentos tupiniquins tinham apenas entre quatro e seis malocas, nas quais viviam “cerca de 400 indios”.
A incessante movimentação dos tupiniquins por seu território tribal não se limitava às jornadas pelo planalto paulistano, mas freqüentemente os conduzia à Baixada Santista, ao sertão do Paranapanema, aos vales do Tietê e do Paraíba do Sul e às fraldas da serra da Mantiqueira (“lugar onde chove muito”, em tupi). Tais andanças se davam por uma rede de trilhas ancestrais, os peabirus. Eram caminhos antiguíssimos, provavelmente percorridos pelos chamados “paleoíndios” mais de 5 mil anos antes e que talvez tenham sido abertos pelos animais da extinta megafauna, como megatérios, gliptodontes e tigres-dente-de-sabre.
Essa rede de peabirus convergia para o atual centro histórico de São Paulo, o Triângulo. E é ela que justifica e explica não apenas o surgimento mas a atual pujança econômica e política de São Paulo – “a capital geográfica do Brasil”, como definiu o historiador Jaime Cortesão. No magistral parágrafo de abertura de seu Caminhos e Fronteiras, o grande Sérgio Buarque de Holanda escreveu:
“Alguns mapas e textos do século 17 apresentam-nos a vila de São Paulo como centro de amplo sistema de estradas expandindo-se rumo ao sertão e à costa. Os toscos desenhos e os nomes estropiados desorientam quem pretenda servir-se desses documentos para a elucidação de algum ponto obscuro de nossa geografia histórica. Recordam-nos a singular importância dessas estradas para a região de Piratininga, cujos destinos aparecem assim representados como em um panorama simbólico”.
É um texto definitivo e esclarecedor, embora, infelizmente, por vezes passe despercebido de tantos cronistas da desvairada cidade.
Fonte: Artur LopesFormatação:HRubiales
Biografia:
São Paulo no Século XVI, Afonso Taunay, Tours Arraul&Cie, 1921
A Cidade de São Paulo – Geografia e História, Caio Prado Jr., Brasiliense, 1983
Aldeamentos Paulistas, Pasquale Petrone, Edusp, 1995
A Coroa, a Cruz e a Espada, Eduardo Bueno, Objetiva (ainda inédito)
São Paulo Seiscentista, Teodoro Sampaio, MEC, 1975